Categoria: choque cultural

O preconceito que Duvivier não enxerga

DuvivierPreconceituoso

Gregorio Duvivier publicou um artigo na Folha de São Paulo narrando como um cidadão que acordasse do coma em 2020 encontraria o Rio de Janeiro. Na visão dele, o Rio teria se transformado em uma cidade religiosa (no pior sentido da palavra). Culpa, é claro, da vitória do Crivella. O artigo é uma pilhéria, obviamente, ele trabalha com uma linguagem de exageros propositais e até entendo o que tentou fazer com o texto, mas o resultado é um punhado de estereótipos grosseiros em um atestado de preconceito assinado e reconhecido em cartório.

Me pergunto se Duvivier tem noção do tamanho do preconceito que seu artigo destila. Acredito que não. Nem ele, nem a maioria dos leitores que concordam com ele. Esse, aliás, é o maior problema dos preconceituosos: são cegos para o próprio preconceito. O preconceituoso até enxerga a intolerância nos outros, mas jamais nele mesmo.  E não enxerga o próprio preconceito porque acha que está falando a verdade, está descrevendo o que vê. Não percebe que já enxerga distorcido porque interpreta tudo a partir de sua forma equivocada de pensar.

Sei que o texto do Duvivier não é sério, mas nessa “brincadeira” ele expressa com clareza o que pensa da Universal. Transportando esse mesmo modelo de texto para a boca de qualquer outro preconceituoso (mesmo que “de brincadeira”), talvez fosse mais fácil enxergar. Um homofóbico, por exemplo, imaginando um Rio de Janeiro cujo prefeito fosse homossexual, poderia pensar em um lugar com os piores estereótipos que sua mente fosse capaz de inventar, quem sabe um lugar que obrigasse todo mundo a ser homossexual e onde gays estuprariam criancinhas na rua. Um racista que imaginasse um Rio de Janeiro cujo prefeito fosse negro, poderia (de brincadeira) usar seus mais odiosos preconceitos para pintar uma cidade tão abjeta quanto seus pensamentos, talvez colocando os negros como bandidos, preguiçosos e burros.

Se o prefeito fosse muçulmano, ainda que (como Crivella) tenha garantido que não misturaria religião com política e governaria para todos, um intolerante poderia descrever o futuro da cidade usando todos os estereótipos de sua bagagem para criar um espantalho terrorista. Mulheres de biquíni na praia seriam decapitadas. Praia, só com burca. E um prefeito do candomblé, então? Alguém poderia imaginar que ele sacrificaria todos os animais da cidade e transformaria todas as praias em “macumbódromos”. Enfim, não há limites para a criatividade de um preconceituoso que acha que só está descrevendo a “verdade” (vista através de suas lentes, é claro). É por meio desse tipo de discurso que se reforça e solidifica um preconceito.

Antes que alguém comente isso, não vou aqui criticar a esquerda ou dizer que ele pensa assim porque é esquerdista e blá blá blá. Sou totalmente contra esse tipo de discurso reducionista, que é exatamente o que Duvivier cometeu na Folha de São Paulo. Abaixo, colo um comentário que encontrei na página dele, de um leitor que tem o mesmo posicionamento político dele e claramente não votou no Crivella, mas consegue fazer uma análise coerente da situação. Coloco aqui para que vocês consigam entender que um discurso coerente e racional independe de posicionamento político. O que estou discutindo aqui é a intolerância e isso, infelizmente, a gente encontra na esquerda, na direita, no centro, nas margens, no avesso, em qualquer lugar.

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E, respondendo ao argumento de que o texto do Gregorio Duvivier é só “uma brincadeira”:

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Qual é o objetivo do texto do Duvivier? Você até entende se algo assim vier de uma criança de dez anos, dizendo que eu sou feia, boba e chata. Mas de alguém que escreve para um dos jornais de maior circulação do Brasil? Qual é o objetivo? Conscientizar não é. Conscientizar a respeito do quê, se o autor não trabalha com a realidade, mas sim com suas ideias pré-concebidas? Mobilizar para a luta, a fim de evitar o apocalipse zumbi? Mas se ele só trabalha com a mitologia do seu próprio pensamento distorcido, que mobilização seria essa?

Dá para entender? Quando o discurso se baseia no preconceito, qualquer coisa que se construa sobre ele, desmorona. Sob esse aspecto, o texto do Duvivier é inútil. É um desabafo que só serve para reforçar o preconceito de quem já é preconceituoso como o autor. Ele fala com seus pares, com quem já tem a mesma opinião. Não é um artigo de jornal, é um post de Facebook. Eu não me ofendo com facilidade, só acho ridículo. Do ponto de vista de quem concorda com Duvivier, o artigo é um desabafo por causa da ignorância de quem, por puro antipetismo, colocou um religioso no poder (correndo o risco de instaurar uma teocracia no Rio de Janeiro #vontadederir). Do ponto de vista de um membro da Universal, é uma agressão gratuita, carregada do pior preconceito, motivada por um impulso de mau perdedor.

Quem realmente se importa com a sociedade e quer fazer algo útil pelas outras pessoas precisa ser capaz de entender todas as microculturas que fazem parte dessa sociedade. Caso contrário, vai se fechar dentro do seu próprio casulo e conversar com seu próprio umbigo. A cada vez que me deparo com um discurso desses, que, sem me conhecer, tenta dizer que eu sou ignorante, manipulada e bitolada, mais rejeito qualquer outra coisa que venha de quem apoia esse discurso. Se querem só reforçar seu preconceito e receber abraços de outros preconceituosos, está funcionando.

Segue abaixo o texto completo:

“Ungida seja a Folha de São Salmo

Por: Gregorio Duvivier

Em 2011, o iPhone ainda era redondinho. Escapuliu das mãos de Fernando e foi parar debaixo do banco exíguo do seu Palio Weekend. Sua mãe não parava de falar do outro lado da linha. “Calma, mãe! Tô procurando o celular” foram as últimas palavras de Fernando antes do coma. Entrou com tudo num poste da avenida Nossa Senhora de Copacabana e só acordou em 2020.

Quando abriu os olhos, a primeira coisa que viu foi um sujeito de camisa branca e gravata lilás. “Olá, eu sou seu médico, Zaqueu”. “Essa é a Clínica São Vicente?”, Fernando perguntou. “Antiga São Vicente, hoje Clínica Vitória em Cristo.” “Mas isso é no Rio de Janeiro?” “Antigo Rio de Janeiro, hoje Novo Rio Jordão. Muita coisa mudou desde a revolução, Ezequiel.” “Meu nome é Fernando.” “Desculpa, Fernando não existe mais. Seu equivalente bíblico é Ezequiel.”

Fernando desceu a rua Marquês do Sétimo Dia até chegar no Jardim Messiânico, onde, olhando pro alto, se deparou com uma enorme pomba no alto do Corcovado. Na avenida Nosso Senhor de Copacabana sentiu falta dos botecos. Entrou numa padaria, a televisão passava um jogo de futebol: FluCristense jogava contra o Coríntios. No lugar da bola, uma santa. Abdias, zagueiro corintiano, chuta a santa pro gol. Na trave. ‘Tá amarrado em nome de Jesus!’, grita o garçom.

No intervalo, Fernando comprou uma ‘Folha de São Salmo’ e percebeu que se aproximava o Carnaval. ‘Certas coisas não mudam’, pensou Fernando, ao ver o concurso de Mulata da Record. Logo percebeu que todas vestiam saia até o tornozelo. O samba-enredo da Ungidos da Tijuca versava sobre o perigo da maconha: ‘Desde a Galileia, os fariseus só querem te drogar/ é coisa do tinhoso/ sete-pele escabroso/ vai te enfeitiçar’.

Pagou com o cartão. Não esqueceu a senha, mas esqueceu dos 10%, lembrou o garçom. ‘Achei que o serviço tava incluído’, explicou Fernando. ‘O serviço tá incluído. Tô falando do dízimo.’

Arrasado, Fernando procurou os amigos. ‘Como é que vocês deixaram o Rio chegar nesse estado?’, Zebedeu, antigo Duda, não entendeu a revolta. ‘De vez em quando um amigo some, toma uma surra, mas em geral é porque se desviou do caminho. Se você tem Jesus no coração e vive na paz do Senhor, seu caminho tá iluminado.’ O amigo sorri pra câmera. Fernando não acredita. Sussurra entre os dentes: ‘A gente precisa fazer alguma coisa’.

‘Calma, Ezequiel’, o amigo sussurra de volta. ‘Pode até estar ruim, mas qualquer coisa é melhor que a roubalheira do PT.'”

Viram que primor? Na minha análise racional, tento evitar o impulso de pensar: “puxa, que babaca”. Mas aí penso que obviamente a criatura nem sabe o que está dizendo. Se soubesse, não diria. E não consigo nem ficar com raiva do cara, sério.  Esse é o exemplo claro do texto feito sem mediação do cérebro. O autor ficou tão revoltado e frustrado com o resultado da eleição que usou todo aquele SENTIMENTO para cometer o artigo. Porque se sentiu agredido com a escolha de quem elegeu Crivella, quis agredi-los com esse texto.

Acho que encontrei o objetivo desse artigo do Gregorio Duvivier: ensinar que você pode até escrever alguma coisa no auge da emoção, mas é melhor deixar paradinho lá no seu computador até o sangue esfriar para ver se realmente vale tornar público. Textos passionais revelam o pior do escritor. Geralmente aquilo que, se ele enxergasse, iria preferir mudar.

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PS: Crivella venceu a eleição ontem e as reações já me fizeram começar um texto sobre preconceito, que eu pretendia publicar durante a semana. Aí hoje me aparece essa. Pelo visto, esse será o tema da semana…

PS2: Sei que causa indignação. Eu mesma disse que o primeiro impulso foi achar o texto babaca. Mas esse post não foi para criticar a pessoa do Duvivier, e sim o comportamento dele nesse caso específico. Já vi Gregorio Duvivier escrever muita abobrinha, mas também já o vi escrever muitas coisas com que concordei. Não é uma questão de “fulano é ruim, por isso fala coisas ruins”. Essas coisas ruins podem estar em qualquer lugar, inclusive dentro de gente muito boa que não faz ideia de que é preconceituosa. O alerta é contra o preconceito e não contra o Duvivier. O tema “igreja Universal” desperta esse tipo de reação odiosa das pessoas e quem é membro da igreja há muito tempo, como eu, já até está meio que acostumado. Mas é importante expor esse problema para alertar quem não quer agir como o Duvivier agiu (inclusive ele mesmo, vai saber).

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Não é tão difícil se destacar

Estou fazendo faculdade à distância e, recentemente, tivemos as provas presenciais. As notas demoraram a sair e houve uma certa agitação nos fóruns, com pessoas perguntando aos tutores quando sairiam as notas, pois o prazo para agendar as substitutivas já estava se esgotando. Até aí, tudo normal. Eu não tenho muito tempo para estudar, mas na véspera das provas reli todas as apostilas. As avaliações não foram fáceis (ainda bem que eu tenho vantagem nas questões dissertativas rs), então também fiquei aguardando o resultado com os outros.

Conforme os dias avançavam, alguns comentários surreais começaram a aparecer nos fóruns. Algumas pessoas que receberam notas insuficientes entravam para reclamar que as provas não tinham nada a ver com a matéria que estudaram. Diziam que muitas questões não estavam no material…

Eu apenas li as apostilas. Tentei ver os vídeos, mas percebi que as apostilas eram mais completas, então, me ative à leitura dos PDFs. E posso garantir que toda a matéria que caiu na prova estava nas apostilas. Mas aquelas pessoas estavam realmente indignadas. Elas realmente acreditavam que tinham sofrido uma injustiça. Das duas, uma: ou não leram com atenção e perderam conteúdo ou tiveram preguiça de ler e apenas assistiram ao vídeo.

O segundo tipo de comentário surreal foi algo como: “Quando vocês vão divulgar as notas? Estou sendo prejudicada porque dependo da divulgação das notas para saber se preciso fazer a prova substitutiva. Se demorar mais, não vai dar tempo de estudar!”. E suas variações: “vocês estão me prejudicando, pois por causa desse atraso, não sei se preciso estudar para a prova”.

Sério. A primeira coisa que me passou pela cabeça foi: COMO ASSIM, CRIATURA? Se sua nota não saiu e existe a chance de você precisar fazer a prova na semana que vem, o que você faz?

a) Começa a estudar. Assim, caso precise fazer a prova, estará preparado.

b) Fica parado, esperando as notas saírem para saber se vai precisar estudar.

Como alguém pode escolher a segunda opção? Como pode? Você precisa estar preparado. Se não tiver necessidade de fazer uma prova, por acaso vai cair uma orelha por ter estudado um pouco mais? Vai perder um braço por ter ficado dois dias sem entrar no Facebook para estudar?

Existe uma multidão vivendo em modo reativo/reclamativo. Quanto menos agem, quanto menos pensam e quanto menos leem, mais dependentes dos outros essas pessoas se tornam. Está cada vez mais fácil se destacar da multidão, é só parar de reagir e começar a agir. Tome a iniciativa. Não espere pelos outros. Não tenha medo de arriscar, não tenha preguiça, não fuja do sacrifício. E – principalmente – não coloque as suas responsabilidades sobre os ombros dos outros. Não é porque a faculdade não fez a parte dela que vou deixar de fazer a minha! Se o seu marido errou com você, você vai errar com ele, também? Se o seu colega não fez a parte dele, você vai deixar tudo ir por água abaixo?

Qual é a graça de se sentir injustiçado enquanto você pode, simplesmente, fazer a sua parte, se esforçar mais e reduzir os danos? Quando lida com a situação de forma racional, tudo se torna mais leve. Você gasta menos energia, resolve tudo mais rápido e não fica perdendo tempo com bobagem. Eu sei que não é fácil assumir responsabilidades, mas 98% das vezes é a única forma de andar para frente.

 

PS: No final das contas, minhas notas foram bem bonitinhas e não precisei fazer segunda chamada de nenhuma matéria. 😀