Mês: março 2011

O gatinho no colo

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O gatinho no colo me adormece a perna. Não consigo me mover sem dor, então não me movo. Ele respira, suspira, mergulha no profundo e curto sono que somente os gatos sabem sonhar. Meu pé formigando embaixo de sua barriga e ele aprofunda-se ainda mais em seu sonho macio, como se quanto mais incomodada eu estivesse, mais satisfeito ele ficasse, ou como se quanto mais incomodada eu estivesse, mais tranquilo ele aparentasse, para equilibrar aquela equação.

Gatinho esconde a cabeça em meu braço, alheio ao barulho de meus dedos no teclado. Gatinho respira profundamente, ronca, anestesiado, como minhas pernas, que nada sentem mais. Aninhado em meu colo, aquele gato enorme transforma-se novamente em um gatinho pequeno, filhote, minúsculo, indefeso, alheio ao mundo, concentrado em sua fofura nata, incontrolável, inconsciente. Gatinho é um potinho de amor derretendo-se em meu colo, tranquilo por simplesmente ter minha presença.

Meu colo desliga o gatinho, que se transporta para outra dimensão, enquanto ronca, em plena segurança de que ali ninguém o incomodará, nenhum mal jamais o alcançará. Gatinho busca sempre minhas pernas, meu colo, meus braços, busca se apoiar em um pedacinho que seja de mim para dormir em paz e para me transmitir sua paz contagiosa, contagiante, e me derreter ao se derreter em mim. O gatinho no colo é uma de suas muitas formas de dizer que me ama.

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Suicídio glamourizado

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*Imagem retirada de um email marketing que tive o desprazer de receber da Editora Caras e mais desprazer ainda de clicar sem querer sobre ele.

Eu não sei por onde começar esse texto. Então talvez o começo apareça no meio, o meio no começo ou eu comece pelo final, mas preciso escrever a respeito ou não conseguirei dormir. Peço desculpas prévias, pois misturarei assuntos aqui, já que não posso comentar o absurdo da Caras sem falar sobre suicídio e sobre a própria história que gerou a notícia. Não vou citar datas, nem colocar links, pois vocês todos conhecem  notícia que irei comentar. A modelo/atriz/escritora Cibele Dorsa morreu após atirar-se da janela de seu apartamento, a mesma janela da qual seu noivo Gilberto Scarpa se jogou em janeiro deste ano.

Segundo Cibele, Gilberto era dependente de cocaína e havia tido uma crise violenta no dia do suicídio, eles discutiram e ele se jogou pela janela, na frente dela. Ela desceu e o viu morrer. Depois disso teve um breve acompanhamento por psiquiatra, o ex-marido Doda Miranda contratou um serviço de home care para garantir a saúde física e mental da moça. Depois que ela já se dizia recuperada, e parecia realmente recuperada, entrou em uma crise de saudade, alimentou os piores sentimentos (acreditando que era amor) e culminou por atirar-se pela janela.

Até aí, mais uma tragédia de alguém que fez a pior escolha que se pode fazer nesta vida. O meu problema começa quando a imprensa passa a glamourizar o suicídio e explorar a tragédia pessoal de Cibele, para garantir a atenção de seus leitores/telespectadores. O teatro do absurdo começa com a própria Cibele enviando sua carta de suicídio por email para a Revista Caras, e deixando uma mensagem de despedida no twitter algumas horas antes de efetivamente se matar. Não vou enveredar aqui pela questão de que alguém poderia tê-la impedido, telefonado, ido até lá, avisado à polícia. Não vou imaginar que havia um jornalista online naquele momento, que leu a carta de suicídio e ficou esperando que a notícia se consumasse para publicar o email em primeira mão. Não existem pessoas assim.

Cibele obviamente havia ingerido medicamentos, pois estava escrevendo com caracteres trocados…logo, além de estar obviamente perturbada (ninguém que esteja bem de cabeça envia sua carta de suicídio a uma revista em vez de enviar à família…) não tinha real consciência do que estava fazendo, nem do que estava escrevendo. O mais ético, não apenas como jornalista, mas como ser humano, era entregar a carta à família e desfazer-se do material, ou publicar apenas um trecho direcionado aos fãs e imprensa – se houvesse esse trecho. Pelo contrário, Caras não só publicou a carta como o fez em capítulos, para aguçar a curiosidade dos comovidos e também dos sádicos de plantão.

Extrapolou-se todos os limites da ética humana…a moça fragilizada e em estado alterado de consciência escreveu o que talvez não escreveria em sã consciência, e a revista publicou, em capítulos, com a frieza com que se publica uma obra de ficção, distorcendo a realidade para enquadrá-la em um enredo que só existe nas páginas da revista.

Citado na carta e, consequentemente, no site e na revista, um determinado ser humano entrou na justiça para impedir a publicação do email. A justiça determinou que não fosse publicado e que os trechos da carta fossem retirados do site…a revista obedeceu, porque tinha de obedecer, mas se fez de vítima e ofendida ao explicar aos leitores!!! Comparando a ordem judicial à ditadura e se dizendo tolhida em sua “liberdade de expressão”.

É o fim da picada!!! Será que só eu enxergo o absurdo da indignação de Caras? Será que só eu vejo o quão ultrajante é publicar a carta de suicídio de alguém? E o quão perigoso é romantizar um suicídio, dizendo que a moça “morreu de amor”? Não morreu de amor coisa nenhuma, ela foi enganada por seus sentimentos, e não conseguiu pedir ajuda, não soube lidar com a morte do namorado (que também se matou em um momento em que não tinha condições de julgar o que estava fazendo) e acabou dando ouvidos às piores vozes que alguém pode ouvir. Sempre digo que o suicídio é uma solução definitiva para um problema temporário…e todo o problema é temporário.

Caras chega ao cúmulo de comparar a decisão da justiça de RESGUARDAR o nome de alguém que não deseja ser citado, até porque a carta não foi escrita por uma pessoa em seu juízo perfeito, com a censura militar!!! É uma afronta à história do Brasil! E lá vai, mais uma vez, a imprensa brasileira, ou melhor, o lado mais torpe da imprensa brasileira, distorcer a “liberdade de expressão”, acreditando que “liberdade de expressão” é atropelar a liberdade dos outros, os direitos dos outros, para vender mais revistas e espaços publicitários.

Outro ponto é que a maneira de Caras abordar o drama é potencialmente perigosa. Gilberto Scarpa entrou em uma paranóia de que sem ele ela seria mais feliz, poderia crescer, conhecer pessoas interessantes e ter uma vida que não teria com um dependente químico. Ele seria a última pessoa no mundo a querer que ela desse fim a sua vida! Quem que realmente ame quer a morte da pessoa amada? Infelizmente ele errou em seu julgamento, ela preferia continuar com ele, lutando até vê-lo bem…ele ouviu as mesmas vozes que ela ouviu, e elas os levaram a um caminho sem volta.

Caras propaga essas vozes enfeitadas com laços e coraçõezinhos, e não duvidem que muitas pessoas que estão lutando para superar a dor de uma perda, muitas vezes semelhante à de Cibele, possam sentir-se seduzidas por essas terríveis e enganosas vozes o vê-las na revista, suaves e tentadoras, oferecendo uma saída aparentemente bonita, um escape, uma fuga que parece tão possível… “Deus perdoa a quem morre por amor”, escreveu Cibele, que tirou isso não sei de onde…provavelmente dessas vozes inaudíveis que falam ao coração, em primeira pessoa, para você pensar que o pensamento é genuinamente seu. A voz da depressão, a voz do desespero, a voz do medo, a voz da dúvida.

Eu, particularmente, fiquei muito triste porque não tinha ninguém para ajudar essa moça quando ela precisou. Não culpo a família, nem os amigos, como eles poderiam saber que ela precisava de ajuda? Se ela dizia que estava bem, que estava se recuperando? Você repara naqueles que estão ao seu redor, imaginando que podem se matar a qualquer momento? Ou você pensa: “não, peraí, fulana tem filhos, sabe que seria um trauma deixá-los assim…sabe que o filho pensaria que ele teve alguma responsabilidade, que não foi bom o suficiente, que não foi motivo suficiente para a mãe viver…” ou “não, fulano tem uma carreira, está cheio de projetos, tem planos…”  Mas as vozes…ah, as vozes…elas ludibriam através dos sentimentos e te convencem de que ao pensar em suicídio é que você encontra a verdadeira paz.

Esses diálogos são internos, bem escondidos, ocorrem com eco, dentro do vazio da alma da pessoa. Passei por isso em uma época remota de minha vida, felizmente eu tive quem me ajudasse, felizmente eu encontrei uma saída, felizmente consegui preencher o tal vazio para que não caibam nele mais vozes que me faziam acreditar que eram meus pensamentos. Os meus pensamentos agora estão onde devem estar: na cabeça. Mas confesso que me doeu ver a história dessa moça terminar assim…como me doeria a historia de qualquer pessoa terminar assim.

Morre por amor quem se sacrifica por aquele a quem ama. Aquele que, sem querer sofrer, sofre para evitar que você precise sofrer. Aquele que, sem querer morrer, morre para evitar que você precise morrer. Jesus fez isso, isso foi morrer por amor. Morrer de amor ninguém morre, porque amor não é doença. Cibele não morreu por amor, a depressão a enganou e a fez acreditar que não haveria outra saída. Pior – a fez acreditar que a morte seria uma saída. Infelizmente, foi uma tragédia lamentável, e o fim da moça e a dor da família deveriam ser respeitados pela imprensa…eles são as vítimas, e não a ridícula revista sensacionalista.


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Segue o texto dramático, apelativo e ridículo publicado no site da Caras (que eu tenho o desprazer de receber no meu email…essas editoras acham que meu email é penico):

“Por ordem judicial, a Revista CARAS e seu site foram vetados de continuar a divulgar todos os termos da exclusiva cobertura sobre a morte da atriz e escritora Cibele Dorsa, aos 36 anos, após cair do 7º andar de seu prédio, em São Paulo.

O site, o único a receber as mensagens de Cibele minutos antes de seu trágico final, teve de retirar todas elas do ar, na íntegra, na manhã desta terça-feira, dia 29. A edição impressa da revista, que chega às bancas nesta quarta-feira, está com tarjas pretas, como na época da censura militar, pelo fato de que o material já estava em processo de impressão quando o mandado judicial chegou à editora, pedindo que o nome de certa pessoa à que a atriz se referiu em suas mensagens não fosse mencionado.

Por conta disso, CARAS Online, que semanalmente publica em sua versão na internet o conteúdo da revista impressa de acesso livre e gratuito, não pode reproduzir a matéria de capa da revista, “Cibele Dorsa, 36 anos – A atriz que morreu por amor”, que faz um balanço da vida de tragédias pessoais e da morte, por amor, daquela que era chamada carinhosamente de “a Cindy Crawford brasileira”.

Informamos que a EDITORA CARAS, por acreditar na plena liberdade de expressão contida na Constituição Federal desse país, e em respeito a seus leitores e internautas, perseguirá a liberação dos textos e nome que foi obrigada a retirar e impedida na sua edição impressa de mencionar, apresentando os recursos cabíveis.”

Caras, quer um conselho? Para que a emenda não fique pior do que o soneto, não “persiga a liberação dos textos e nome” como se estivesse lutando por um bem maior, liberdade de expressão etc. e tal…melhor voltar aos faqueiros e castelos e esquecer o mico de ter igualado uma fofoca post-mortem ao jornalismo verdadeiro perseguido pela ditadura militar.

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PS: Só eu acho ridículo o texto forçadamente rebuscado de Caras, que faz qualquer matéria parecer trecho de romance de banca de jornal? Copio a frase que aparece no site da revista acima do texto que colei aqui:

“Desalentada, ela salta no vazio na esperança de reencontrar o amado”

Me diz, só eu me revolto com esse tipo de coisa?

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