Ressuscitando mais um texto esquecido da extinta coluna Sala de Estar, na Revista Paradoxo…
Sem descanso

A vida secreta das palavras

por Vanessa Lampert
de Porto Alegre
[30/08/2007]

Somos torturadores de palavras. A palavrinha está lá, na dela, bem feliz e de repente alguém resolve colocá-la em um contexto estapafúrdio para que ela se torne ainda mais estapafúrdia que a própria palavra “estapafúrdio”. Temos o poder de transformar as palavras em qualquer coisa que quisermos, dependendo de como resolvemos usá-las e isso deve apavorar as coitadas.

Aliás, retiro o que disse. Nenhuma palavrinha pode estar na dela, feliz e saltitante, isso é impossível. As palavras vivem em constante estado de tensão, pois raramente são bem utilizadas. Sabem do poder do ser humano (aquele monstro) sobre elas e estão sempre de sobreaviso, apavoradas, não esperando menos do que o pior. Há quem diga que palavras são esperançosas. Não são. Elas se reinventam para renovar o disfarce, só isso. Mas vivem sempre assustadinhas, sem motivo aparente, antevendo o que nem existe.

Como a gatinha da minha mãe, a Lili. Nunca esteve na rua, nunca foi ameaçada, nunca foi maltratada, mas se esgueira pelos cantos, neurótica, esperando um ataque que nunca virá. Lili é uma palavrinha felina. A outra gatinha, Bianca, vive brincando e aproveitando a vida, descobrindo novas coisas dentro de casa há cinco anos. Se enrosca nos fios do computador e se diverte quando eu ou minha mãe chamamos sua atenção, sai correndo, se engalfinha em um ratinho de brinquedo no meio da sala e vive em um grande playground interessante, até cansar e dormir, em cima da cama, enquanto a Lili, na varanda, mia dramaticamente chamando a Bianca, que a ignora, sabendo que não é para tanto.

Lili vive em um constante stress. Palavras são estressadas. Minha mãe levantou a hipótese de ela ter desenvolvido um problema de visão e se assustar porque vê tudo distorcido. Campo Grande é uma cidade desprovida de oftalmologista veterinário, portanto, só saberemos o dia em que a Lili, rica e famosa, resolver viajar para uma consulta no Rio de Janeiro.

Talvez as palavras não enxerguem bem em seu estado normal, precisam ser guiadas, pois vêem borrões distorcidos (um borrão distorcido é um troço bem borrado mesmo). Devem ser tratadas com carinho e paciência e devidamente orientadas pelos caminhos mais seguros. Palavras são tão sensíveis, delicadas, frágeis e expostas quanto gatos. Infelizmente, é impossível castrá-las e não dar acesso à rua. Se telássemos as janelas e não deixássemos as palavras na rua precisaríamos delas na saída, dos gatos não precisamos lá fora. E as palavras, mesmo assustadas, precisam sair e encontrar outras palavras, os gatos só saem por curiosidade, vivem bem felizes dentro de casa.

E palavras nunca morrem. Um gato na rua pode ser atropelado, envenenado, torturado, maltratado, atacado, e nunca voltará. Uma palavra na rua pode ser atropelada, envenenada, torturada, maltratada, atacada e continuará, higlander, sua jornada milenar e sem descanso, esgueirando-se pelos becos ou sem esperança, sem alma, em bocas rasas, ou mesmo escondida, nas entrelinhas. Entrelinhas são submundos das palavras, sociedade paralela na qual palavrinhas sujas e esfarrapadas reúnem-se em redor de fogueiras, esquentando nojentas salsichas, cercadas de cinza e sombras. Não há luz solar nas entrelinhas, e vive-se reptilianamente, trogloditando pelos dias. Vida difícil.

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