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Dos momentos dramáticos que minha profissão proporciona. Você precisa editar um trecho que diz, basicamente, que se você quer ser uma pessoa boa, não deve andar com pessoas ruins. Só que se depara com a palavra “caráter”. “Se você quer ser uma pessoa de caráter, não deve andar com (plural de mau-caráter)…” Como você completaria essa frase? Mau-caráteres? Maus-caráteres? Maus-caracteres? Maus-caráters? rs

A chamada “norma culta” (uma senhora muito educada rs) diria que o “certo” é dizer “maus-caracteres”, porque o plural de caráter é caracteres. No entanto, é algo que quase ninguém usa. Uma expressão que causaria estranhamento no leitor e o faria parar no meio do livro, encarar aquela palavra e dizer “oi? como é?”

Confesse, leitor! Você imaginaria caracteres! Símbolos tipográficos malvados, tipo uns %$@& do mal. Sorry, dona gramática normativa, eu nunca conseguiria escrever isso em um livro para pessoas normais em pleno 2015. Não dá. Porque eu tenho cer-te-za que o leitor tropeçaria naquele “caracteres” e estragaria o ritmo da coisa toda.

Aí lá vou eu tentar encontrar uma saída. Já me convenci de que não vai dar para usar os maus caracteres. Preciso encontrar uma boa solução para o problema que eu mesma criei. (Sim, porque um escritor/editor/revisor/redator/preparador de texto/jornalista normal não teria esse problema. Simplesmente tascaria “maus-caracteres”, porque “é o certo”, sem pensar que, além de deixar o texto bonitinho e “correto”, sua obrigação é manter a legibilidade.)

Uma boa saída para esse impasse geralmente é mudar tudo. Não adianta eu procurar uma palavra que substitua “maus-caracteres” porque não vou encontrar enquanto meu cérebro achar que é a única coisa que cabe nessa estrutura. Na melhor das hipóteses ele vai me sugerir que encontre uma forma de manter tudo no singular.

Poderia escolher “se você quer ser uma pessoa de caráter, não deve andar com pessoas sem caráter”. Sei que jornalistas que aprenderam o corte de palavras repetidas como uma das técnicas de edição me pendurariam no madeiro por essa escolha. Mas, em literatura, repetições propositais, conscientes, são bem-vindas (literatura, eu te amo).

No entanto, se eu fizer essa mesma edição em um texto mais engessadinho e não quiser que meu editor tenha uma síncope, posso pensar um pouquinho mais e optar por algo do tipo “Se você quer manter seu caráter intacto, fuja de quem tem desvios de caráter” ou qualquer opção que diga a mesma coisa com outras palavras. Pode até encontrar um sinônimo para “caráter”. Eu tenho um dicionário de sinônimos (do Antenor Nascentes) e ele me ajuda quando a criatividade está em baixa.

O que não pode acontecer é manter uma palavra que pode causar dúvida ou atrapalhar a compreensão do meu leitor. Não posso me dar ao luxo de escrever sem ter plena consciência de que minhas palavras realmente estão dizendo o que eu quero dizer. Ainda que eu esteja fazendo o certo, se existe uma outra maneira igualmente certa de resolver uma situação, mas que cause menos danos à compreensão do meu leitor, é minha obrigação encontrá-la.

Palavras são material de construção. Cada palavra é unida a outra e, juntas em um contexto, formam casas, constroem muros, fazem pontes. Somos nós que escolhemos o que vamos construir. Em um relacionamento, pontes são mais importantes do que muros. Casas são lugares de abrigo. Lugar de alimento. De proteção.

Em alguns momentos, você vai precisar optar por uma forma mais dura, que não gostaria de usar. Uma palavra complicada, em que seu leitor corre o risco de tropeçar. Use de forma consciente. Tente sempre manter a ponte intacta para que sua comunicação consiga fluir bem. Uma tábua cheia de pregos pode ser algo perigoso de se manter nessa ponte.

O objetivo do texto é ser compreendido. E esse, na verdade, é o objetivo de qualquer um que se comunique. Não é só uma questão de saber como se escreve a palavra “x” ou “Y”, mas de entender que o texto não é um amontoado de palavrinhas. Ele está ali com uma finalidade. Construa sua comunicação tendo seu objetivo em mente e seja suficientemente flexível para alterar frases e rumos a fim de não destruir sua meta.

Lembre-se de que seu interlocutor não está dentro da sua cabeça. Ele não tem obrigação de adivinhar o que você quer que ele saiba. Aprenda a construir pontes com palavras. Todos somos construtores. Relacionamentos são feitos de palavras, pensamentos e atitudes. Todas essas coisas devem estar conectadas, com as conjunções certas, com escolhas bem analisadas. A vida é um grande texto. Tudo está sendo escrito. São livros e mais livros que imprimimos desde nosso primeiro choro até nosso último suspiro.

Não é Deus quem escreve os livros da sua vida. É você.

5 Comments on Escolha bem as palavras

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