Uma notícia me deixou extremamente indignada hoje, pela impunidade. Alunos de uma UNIVERSIDADE de São Paulo (UNESP) organizaram, via orkut, uma “competição” apelidada de “rodeio de gordas” no qual a regra era encontrar uma aluna obesa, tentar ganhar a confiança dela e, depois, agarrar-se em suas costas e permanecer o máximo de tempo possível. A ação ocorreu durante um evento esportivo público da universidade. A despeito da humilhação passada pelas alunas, a direção da universidade esquivou-se de punir os agressores, com o pífio argumento: “não queremos estabelecer um processo inquisitório” (palavras do vice diretor Ivan Esperança). Ok, então punir réu confesso agora virou “processo inquisitório”??? As provas estavam à disposição de quem quisesse vê-las no orkut, e mesmo agora – depois de a comunidade ter sido deletada – continuam disponíveis através de print screens. Os próprios autores não esconderam a participação no ato. Um deles diz que tratava-se de “uma brincadeira”. Poderia ser uma bela oportunidade da Unesp educar seus alunos, mostrando que não se pode desvalorizar um ser humano desta maneira. Não compreendo a incapacidade de algumas pessoas em enxergar um indivíduo que é diferente dela como um ser humano. A falta de respeito por outro ser humano a ponto de sujeitá-lo a uma humilhação dessas e ainda tentar se justificar dizendo que “foi uma brincadeira” (como quem, obviamente, ainda não entendeu a dimensão do que fez) demonstra uma realidade preocupante entre nossos jovens.

Começando do começo: o ser humano não é ensinado a ter respeito a vida. Qualquer forma de vida diferente dele mesmo é tratada como inferior. Procura-se contato com seres extraterrestres, mas o ser humano não foi capaz de aprender a se comunicar com outros terráqueos. Se eu fosse um alienígena, já veria isso como sinal de que esses humanos não são confiáveis e deletaria qualquer plano de aproximação. Por isso defendo que vida inteligente, se fosse inteligente mesmo, não se aproximaria da Terra tão cedo. Não há nenhum respeito à vida, só isso explica uma coisa esdrúxula como rodeio ser vista como esporte. Mas quando isso ultrapassa o especismo e atropela a relação com nossa própria espécie, a coisa toma contornos monstruosos. Agressão gratuita de quem tem o pensamento tão raso, mas tão raso que não é capaz de ter a menor empatia com outro ser humano, incapaz de se colocar no lugar de um ser da mesma espécie simplesmente pelo formato do corpo ser diferente?

Eu entendo, embora não concorde,  que alguém tenha dificuldade de ter empatia com animais, com seres de outra espécie, pois toda a forma de comunicação é diferente. Entendo quem ainda insiste em dizer que são irracionais, inferiores (se o ser humano não consegue se comunicar eficientemente com um animal, o inferior é o ser humano, pois eles conseguem muito bem) porque são espécies às vezes muito diferentes da nossa. Mas seres da mesma espécie? E não seria obrigação da Universidade educar seus alunos nessa direção? Mostrando a importância de respeitar ao colega, ensinando a se colocar no lugar dele? As pessoas que são julgadas “diferentes” pela sociedade já carregam um estigma tão cruel, crescem em rejeição, sofrem na hora de fazer coisas que para nós, julgados “normais” são absolutamente normais e corriqueiras.

Vou contar duas histórias aqui, a título de ilustração, e que mudaram minha forma de ver muitas coisas. São histórias simples, bem longe da profundidade de muitas outras que você, com um pouco de sensibilidade e parando para ouvir, descobre com facilidade por aí. A primeira é mais recente, tem uns cinco anos. Eu tinha o hábito de, caso precisasse sair à noite, em locais pouco seguros, sair sem maquiagem, com uma camisa larga de meu marido (que tem 1,87, contra meu 1,72, imagine o tamanho), sem salto, de cabelo preso, para chamar menos atenção possível. Sempre funcionou. No final de 2005, eu cortei o cabelo bem curtinho. Dias depois, precisei encontrar meu marido no intervalo de um curso que ele fazia no centro de Porto Alegre, perto das dez da noite. Coloquei uma camisa dele, uma calça jeans, um sapato baixo, não passei maquiagem e saí, bem tranquila, com meu único pecado: uma bolsa de ursinho de pelúcia.

Desci da lotação e fui atravessar a praça…um grupo de jovens de classe média, parecendo bem civilizados, tomava chimarrão na praça, alguns fumavam, e conversavam. Quando viram aquela figura magra, com camisa masculina, cabelos curtos, andar delicado e bolsa de ursinho, não tiveram dúvidas: começaram a gritar: “viadinho!! Vem aqui, viadinho!” Na hora fiquei com vontade de rir, achei graça, mas conforme eu caminhava, a graça acabou e deu lugar ao horror. As frases começaram a ficar agressivas e eu sinceramente achei que seria agredida no meio da praça pelo simples fato, segundo os malucos de plantão, de ser “um viadinho”. O tratamento não era o mesmo dado a um ser humano. Eles só se acalmaram quando uma menina se deu conta e disse, sem graça: “é uma guria”, mas alguns não deram a mínima e continuaram me xingando. Como assim “é uma guria”??? Uma guria é mais gente do que um homossexual? A pessoa vê o diferente e a diferença descaracteriza-o como ser humano aos seus olhos. Que processo mental doido é esse, que desumaniza o agressor que extirpa da vítima sua humanidade? Cheguei em casa aquele dia convicta de que para ser gay assumido o cara tem de ser muito macho.

Outra história é a minha. Eu cresci meio desengonçada, magra demais, branca demais, hiperativa demais. A chupeta nada ortodôntica foi minha companheira até aos oito anos de idade e esculhambou minha arcada dentária. Tanto os dentes de cima, quanto os de baixo, eram extremamente separados e projetados para a frente, e isso deformava toda a parte inferior do meu rosto, além disso eu tinha o que se chama de “língua presa” e a dicção era mil vezes pior do que o Lula (que tanta gente ainda critica). Por muito tempo eu me chamei de feia. Não chamo mais. Percebi que o problema não estava comigo, o erro não era meu em ser diferente, o erro era daqueles que insistiam em não me ver, mas enxergar apenas as diferenças, como se elas fossem uma entidade desconectada de mim, fazendo com que eu me tornasse uma diferença ambulante, uma aberração.

Se eu fosse bem quietinha e cordata, talvez tivessem me deixado em paz. Mas eu me destacava, as professoras me adoravam, elogiavam minhas redações, e eu sempre brigava por minhas ideias, fazia teatro e era elogiada em todas as peças em que participava. Eu ousava existir e ostentar minha existência diferente diante de todos aqueles que – ingenuamente – julgavam-se tão iguais. Os adultos que não me conheciam, me olhavam esquisito pela minha aparência, mas os que me conheciam, gostavam de mim. O problema começou quando alguém resolveu que eu era feia demais para ser tratada como um ser humano. E o Bullying começou.

Chegou a um ponto em que a coisa se transformou em um inferno: foram anos de encheção de saco. O ápice foi no final da sexta série, quando o colégio INTEIRO começou a me perseguir (e não era um colégio pequeno…). Só me chamavam pelos apelidos, fingiam se assustar quando me encontravam no pátio…até alunos da oitava, que eu nunca tinha visto na vida, entraram no balaio. Minha mãe me dizia que eu estava em fase de crescimento e que quando eu tivesse 18 anos, eu estaria linda e aquelas meninas que me humilhavam estariam todas horrorosas…hahaha…eu acreditei com todas as minhas forças, e decidi que, enquanto isso não acontecesse, eu viveria a minha vida sem me importar com minha aparência, e iria me focar na minha inteligência. Graças a Deus pela minha mãe, que minimizou aquele horror na minha cabeça. Eu separei “o que os outros acham de mim” do “o que eu sou”, uma coisa não tinha relação com a outra, na minha cabeça (aí graças a Deus também pelo TDAH, talvez se eu tivesse mais noção, não teria conseguido desconectar as coisas assim).

Pegavam fotos minhas para tirar sarro dos colegas “olha a sua namorada!” Felizmente quando extrapolou os limites e denunciei as peças-chave à diretoria (depois de quase dois anos de inércia dos professores, que me viam chorando na sala por causa das agressões e nunca fizeram nada), a diretora foi enérgica, rendeu bronca e advertência aos agressores, que foram ameaçados com suspensão caso reincidissem. O final daquele ano foi muito tranquilo. Mudei de escola duas vezes nesse período todo de Bullying, mas o problema me perseguia. Quando finalmente consegui colocar aparelho, as coisas foram gradualmente melhorando, mas os apelidos persistiram até a oitava série.

Perto da idade adulta, alguém decidiu que eu era bonita e que deveria ser tratada como um ser humano – e mais – eu era atendida com mais educação e mais agilidade do que a minha amiga gordinha. Eu comecei a ser tratada como mais do que um ser humano!! Já fui atendida com mais respeito do que minha mãe, porque ela não é branca (e a loja presenciou o maior barraco que uma moça branquinha, magrinha, com bom vocabulário, boa instrução, bem vestida e aparentemente delicadinha poderia fazer por causa disso. Nunca mais julgam alguém – bem ou mal – pela aparência). A diferença no tratamento pela aparência física existe entre as pessoas ignorantes (e “pessoas ignorantes” podem ter qualquer nível de escolaridade, entenda bem. Temos muitos ignorantes pós-doutorados por aí e muita gente que nem o ensino fundamental concluiu e que não tem nada de ignorante). Eu continuo sendo a pessoa que sempre fui, mas alguém decidiu que minha embalagem merece mais respeito agora.

Essas pessoas ainda têm a cara-de-pau de falar em ética, em respeito, em Deus, sendo que não conhecem nenhum desses assuntos, pois se conhecessem, jamais julgariam uma pessoa por fatores transitórios. Nem estamos mais discutindo padrões de beleza, mas padrões de humanidade. Quando uma pessoa deixa de ser humana para você? Depois de quantos quilos? Quantos dentes ela tem que ter para que você a veja como humana? Quantos dedos? Quantos braços? Quantas pernas? Qual problema de dicção é aceitável? Até quantos tons de pele entram em sua classificação de “humanos”? Quantos centímetros na altura? Quantos diplomas na parede? Quanto dinheiro na conta bancária? Até quantas plásticas a pessoa ainda é humana e merece o respeito? Se deformar o nariz, ou esticar demais a boca, perde o direito à empatia e ao respeito? Qual é o seu limite? Quais decisões a pessoa não pode tomar?


Quem enche a boca para dizer que o governo da Dilma vai implementar uma ditadura, fim dos direitos individuais, e para defender seu não-voto em Dilma ridiculariza os nove dedos de Lula, sua dicção, sua falta de diploma (ao cúmulo de chamar alguém do nível de inteligência e articulação de Lula de “analfabeto” por não ter curso superior), ou os quilos a mais de Dilma, o fato de ela ter feito plástica, sua maneira de falar, não vê que é esse tipo de raciocínio, que desqualifica pessoas por sua aparência física, fazendo com que se tornem menos humanas e, por isso, indignas de qualquer respeito (já que para esses indivíduos, aquilo que não é igual a eles mesmos não tem o menor valor), é o que torna possível regimes totalitários que eliminam os direitos individuais de quem teve o descaramento de nascer diferente de quem faz as regras.

Assim grande parte do povo alemão foi conivente com o nazismo, muitas pessoas entregavam famílias inteiras à morte sem pesar-lhes a consciência. Assim o Brasil conviveu por tantos anos com a escravidão, assim foi possível a caça às bruxas na inquisição: para aplacar sua consciência ao cometer uma atrocidade, basta tirar de sua vítima sua humanidade, ignorar sua alma. Quem acredita que animais não têm alma, não respeita suas vidas e não vê problema em serem mortos sem necessidade. Quem retira de um ser humano sua humanidade e de um animal sua senciência para justificar a crueldade, não percebe que o vazio, o oco, o sem alma é o agressor, e não a vítima. Torna-se aquilo que ele mesmo abomina.



Clique aqui para ler a notícia da atrocidade.

Imperdível é o texto “Porca gorda” de Eliane Brum. De março, e infelizmente, sempre  atual. Clique aqui para ler.

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2 Comments on Rodeio da ignorância

  1. Fiquei com vergonha pelo que os acadêmicos da Unesp fizeram e com pena das meninas que tiveram que passar por isso. Mas o episódio vem em boa hora para repensarmos um pouco nossos próprios preconceitos e o modo como cultuamos a magreza em nosso tempo. Para quem achava que bullying era coisa de escola primária, os marmanjos universitários provaram que maldade, preconceito e discriminação existem em todas as fases da vida. Mas provaram, principalmente, que a crueldade humana não tem limites.

    O preconceito é o pior sentimento que existe. Tu que já sentiu isso na pele e já presenciou cenas tão tristes sabe… a gente se sente impotente mesmo. Foi assim que eu me senti ao ler sobre o tal rodeio.

  2. “Rodeio de Gordas” é coisa de viado ou virgem… quem gosta de mulher não faz uma babaquisse dessas…

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